quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A longa noite de Lola


Por Chissana Magalhães e Gláucia Nogueira 


O trrrriiiimmmm estridente de um telefone viola a noite.

Lola abre preguiçosamente os olhos e boceja sem parcimónia. Fica muito quieta a ouvir o desagradável ruído, até que o aparelho, ciente de ter sido ignorado, emudece. Olha triunfante para o telefone e, com um muxoxo de enfado, ergue-se e vai rebolando até a cozinha.

O colossal frigorífico branco encara-a com a sua pose habitual de guardião do santo graal. Lola desdenha-o e, ao invés, senta-se à mesa cogitando se estará com fome ou apenas em busca de uma distração.

Desde o início da primavera deu por sí perdendo o apetite. Seria talvez a saudade de Napoleão, aquele energúmeno. Bufa um pouco ao lembrar-se da cara daquele paspalhão, funesto e barulhento. Sempre lançando-lhe olhares gulosos e suplicantes, salivando lascivamente ao vê-la desfilar rebolantemente do quarto para a sala, da cozinha para o quintal onde, diariamente, ambos se deliciavam com banhos de sol.

Invariavelmente, ele passeava os olhos pelo seu corpo sem nem tentar disfarçar. Qualquer ínfimo movimento seu era milimetricamente seguido por aquele ser boçal com o qual tinha o desprazer de compartilhar a casa.

Sacudiu as ideias, irritada pela inopinada e desobediente vontade de vê-lo. Podia lá ser?

O mutismo e o negrume da noite engordavam à medida que as horas deslizavam rumo à madrugada. Dormitara alguns minutos, ali mesmo, à mesa. Finalmente decide-se a voltar para a cama. A meio do caminho, novamente a estridência do telefone a perfurar a paz da noite.

Desta vez, a pessoa do outro lado insiste até ser atendida: "ela" acorda e, arrastando os pés, vai atender. Lola mira como "ela" esfrega os olhos numa tentativa de força-los a dizerem adeus a Morfeu.
Com um longo miado, Lola trota até a dona e esfrega-se nas suas pernas enquanto esta responde ensonada à pessoa que lhe fala. Porfia e consegue que ela se agache para pegá-la, ginasticando para manter o objecto preso entre o ombro e o queixo.

A gata houve o som nasalado que escorre do auscultador. Logo, distrai-se com o aroma no roupão da dona. Cheira a Napoleão. O raio do cão sempre se deitava em cima daquele roupão. Não havia maneira do seu olor sair, por mais que lavassem a peça. Claro que eles, humaníssimos, não sentiam nada.

Cachorro imbecil… Quando voltaria para casa? Saudades dele a segui-la pelos cômodos, a medo, arriscando uma patada dela no focinho, do tipo “deixa-me em paz, cão fastento”.

Lembrou-se de quando ele chegou, pequenino e tolo, já ela era uma senhora de dois anos. No primeiro dia cheirou-o desconfiada, ficou por longe, arredia, mas acabou por ir se aproximando, vendo o quão inofensiva era aquela bola preta luzidia, do mesmo tamanho que ela. Por fim, aceitou-o.

Com o passar do tempo, o bicho foi crescendo de uma maneira que ninguém imaginava, com modos estabanados e tantas correrias e brincadeiras brutas que só mesmo outro cão para o aturar. Ela abominava aquelas efusões e confusões caninas. Distanciava-se, solene, tal qual a esfinge que dizem parecer com os gatos. Só vez por outra se permitia aconchegar-se no brutamontes, quando ele estava dormindo bem quieto. Era quentinho, para isso bem servia.

No colo da dona, Lola ouve do outro lado da linha a notícia de que Napoleão fora visto a vadiar pela rua. Um amigo que sabia do desaparecimento do cão contava que passando de táxi viu-o sozinho a perambular pela noite de postes raros, farejando qualquer coisa orgânica para lamber. Depois de semanas, devia mesmo estar com fome. Ainda mais ele.

"Ela" perguntava aflita a localização exacta, a que horas tinha sido, queria sair naquele mesmo instante para procurá-lo, mas sem carro era complicado àquela hora da noite.

Lola imagina que deve estar arrependida por ter permitido que ele fosse para a rua, influenciada por pessoas que acreditam deverem deixar os animais domésticos viverem a sua sexualidade livremente. Lola não vai nessa conversa. Bicho bem tratado é dentro de casa, ela própria tinha sido operada ainda antes de completar um ano. Napoleão terá ido atrás de alguma cadela no cio, e depois ficou pela rua como cão vadio.

Mas os cães, dizem, costumam saber voltar para casa, lembra. Será que Napoleão preferiu ser pobre e livre ao invés de viver com elas e todo o conforto e paparicos? Será que vai aparecer amanhã? Será que está mesmo perdido e essa ideia de os cães saberem voltar para casa é apenas um mito? Pelo menos, sabemos que está vivo, pensa. Mas poderá ser roubado, sendo um animal de raça. Poderá comer veneno que andam por aí a espalhar pelas calçadas para acabar com os cães abandonados. E se for atropelado, como vira da janela uns dias antes?

O táxi parece que mirou na cadelinha prenha da esquina e deu em cheio nela. Nem um ganido, nem um ai. Só um tremor fugaz nas patas e ponto final. A volta dessa recordação faz Lola arrepiar-se mais uma vez. Salta para o chão e refugia-se debaixo da cama, muito séria e secreta, de olhos bem abertos, a meditar na barbárie deste mundo.