sábado, 29 de novembro de 2014

Carta para Corpingú

Por Gláucia Nogueira


Há monstros pela cidade, Corpingú, cuidado. Não vai lá não, não liga para a janela aberta e a liberdade sagrada de todos os gatos. Deixa isso pra lá.

Olha a almofada, tão macia, o sofá gostoso onde a tua dona te deixa esfregar as costas e dormir o dia inteiro. Olha a irresistível caixa de papelão para brincar de esconder, o tapete peludo, o arranhador feito especialmente para ti e que tu não ligas. Tanta coisa boa nesta casa para te distraíres, e ficas aí a espreitar uma oportunidade. Não sai, a rua é perigosa.

Há monstros pela cidade, Corpingú. Chamam-nos crianças. Dizem que são inocentes... mas outro dia vi um grupo deles a jogar à bola de um lado para o outro, a acertar uns e outros com a pequena esfera, numa enorme algazarra de alegria, típica das crianças. Mas, acredita, de repente a bola caiu... e eles continuaram a correria, mas a bola, imagina, a bola era um gato. Um filhote de uns três meses, que ficou lá no chão desorientado, tonto, tive de fazer com que fugisse rápido e se escondesse.

Lembra dos teus irmãos eletrocutados em cima de uma casa por um fio desencapado? Lembra tua mãe esticada no meio da rua... Teus filhotes que comeram veneno, teu primo que teve a cabeça esmagada por uma pedra, e quem fez isso era um ser humano... de apenas 11 anos, que depois contou aos colegas, com todos os pormenores, a façanha. Tem certos casos, Corpingú, que nem tenho coragem de te contar.  Como o do fogo, da água quente, do afogamento.

E se aparece o facínora matador de cachorro? Ou você acha que gato ele poupa?

Por isso te digo, cuidado, não vai. Porque nem tudo eu posso fazer, às vezes escapa. Por isso te digo, fica com juízo, perto das pessoas que te amam e não queiras te afastar delas. Não imaginas os perigos dessas ruas. Viver é muito perigoso, Corpingú, para um bicho inocente. Bicho homem é que toma conta de tudo.

Fica bem,


Teu anjo


quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A longa noite de Lola


Por Chissana Magalhães e Gláucia Nogueira 


O trrrriiiimmmm estridente de um telefone viola a noite.

Lola abre preguiçosamente os olhos e boceja sem parcimónia. Fica muito quieta a ouvir o desagradável ruído, até que o aparelho, ciente de ter sido ignorado, emudece. Olha triunfante para o telefone e, com um muxoxo de enfado, ergue-se e vai rebolando até a cozinha.

O colossal frigorífico branco encara-a com a sua pose habitual de guardião do santo graal. Lola desdenha-o e, ao invés, senta-se à mesa cogitando se estará com fome ou apenas em busca de uma distração.

Desde o início da primavera deu por sí perdendo o apetite. Seria talvez a saudade de Napoleão, aquele energúmeno. Bufa um pouco ao lembrar-se da cara daquele paspalhão, funesto e barulhento. Sempre lançando-lhe olhares gulosos e suplicantes, salivando lascivamente ao vê-la desfilar rebolantemente do quarto para a sala, da cozinha para o quintal onde, diariamente, ambos se deliciavam com banhos de sol.

Invariavelmente, ele passeava os olhos pelo seu corpo sem nem tentar disfarçar. Qualquer ínfimo movimento seu era milimetricamente seguido por aquele ser boçal com o qual tinha o desprazer de compartilhar a casa.

Sacudiu as ideias, irritada pela inopinada e desobediente vontade de vê-lo. Podia lá ser?

O mutismo e o negrume da noite engordavam à medida que as horas deslizavam rumo à madrugada. Dormitara alguns minutos, ali mesmo, à mesa. Finalmente decide-se a voltar para a cama. A meio do caminho, novamente a estridência do telefone a perfurar a paz da noite.

Desta vez, a pessoa do outro lado insiste até ser atendida: "ela" acorda e, arrastando os pés, vai atender. Lola mira como "ela" esfrega os olhos numa tentativa de força-los a dizerem adeus a Morfeu.
Com um longo miado, Lola trota até a dona e esfrega-se nas suas pernas enquanto esta responde ensonada à pessoa que lhe fala. Porfia e consegue que ela se agache para pegá-la, ginasticando para manter o objecto preso entre o ombro e o queixo.

A gata houve o som nasalado que escorre do auscultador. Logo, distrai-se com o aroma no roupão da dona. Cheira a Napoleão. O raio do cão sempre se deitava em cima daquele roupão. Não havia maneira do seu olor sair, por mais que lavassem a peça. Claro que eles, humaníssimos, não sentiam nada.

Cachorro imbecil… Quando voltaria para casa? Saudades dele a segui-la pelos cômodos, a medo, arriscando uma patada dela no focinho, do tipo “deixa-me em paz, cão fastento”.

Lembrou-se de quando ele chegou, pequenino e tolo, já ela era uma senhora de dois anos. No primeiro dia cheirou-o desconfiada, ficou por longe, arredia, mas acabou por ir se aproximando, vendo o quão inofensiva era aquela bola preta luzidia, do mesmo tamanho que ela. Por fim, aceitou-o.

Com o passar do tempo, o bicho foi crescendo de uma maneira que ninguém imaginava, com modos estabanados e tantas correrias e brincadeiras brutas que só mesmo outro cão para o aturar. Ela abominava aquelas efusões e confusões caninas. Distanciava-se, solene, tal qual a esfinge que dizem parecer com os gatos. Só vez por outra se permitia aconchegar-se no brutamontes, quando ele estava dormindo bem quieto. Era quentinho, para isso bem servia.

No colo da dona, Lola ouve do outro lado da linha a notícia de que Napoleão fora visto a vadiar pela rua. Um amigo que sabia do desaparecimento do cão contava que passando de táxi viu-o sozinho a perambular pela noite de postes raros, farejando qualquer coisa orgânica para lamber. Depois de semanas, devia mesmo estar com fome. Ainda mais ele.

"Ela" perguntava aflita a localização exacta, a que horas tinha sido, queria sair naquele mesmo instante para procurá-lo, mas sem carro era complicado àquela hora da noite.

Lola imagina que deve estar arrependida por ter permitido que ele fosse para a rua, influenciada por pessoas que acreditam deverem deixar os animais domésticos viverem a sua sexualidade livremente. Lola não vai nessa conversa. Bicho bem tratado é dentro de casa, ela própria tinha sido operada ainda antes de completar um ano. Napoleão terá ido atrás de alguma cadela no cio, e depois ficou pela rua como cão vadio.

Mas os cães, dizem, costumam saber voltar para casa, lembra. Será que Napoleão preferiu ser pobre e livre ao invés de viver com elas e todo o conforto e paparicos? Será que vai aparecer amanhã? Será que está mesmo perdido e essa ideia de os cães saberem voltar para casa é apenas um mito? Pelo menos, sabemos que está vivo, pensa. Mas poderá ser roubado, sendo um animal de raça. Poderá comer veneno que andam por aí a espalhar pelas calçadas para acabar com os cães abandonados. E se for atropelado, como vira da janela uns dias antes?

O táxi parece que mirou na cadelinha prenha da esquina e deu em cheio nela. Nem um ganido, nem um ai. Só um tremor fugaz nas patas e ponto final. A volta dessa recordação faz Lola arrepiar-se mais uma vez. Salta para o chão e refugia-se debaixo da cama, muito séria e secreta, de olhos bem abertos, a meditar na barbárie deste mundo. 


quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Paixão à primeira vista


Por Mônica Decanini


Praia. Vento forte no rosto. Ela se aproximou. Aninhou-se em meu colo. Evocou meu sentimento materno mais profundo. Porque não sermos mãe e filha? Por pertencermos a diferentes espécies? Que espécie “superior” é esta que abandona a outra como se fosse lixo. Quero ser mãe. De uma adorável cachorrinha, que entregou a mim todo o seu amor. Beijou-me. Aconchegou-se. Recebi muito mais do que dei. A energia amorosa foi intensa, mais do que qualquer outra que já havia sentido. Levei-a dali para longe. Outro continente. Da África para a América do sul. Tornamos-nos companheiras. Quando estou mal se aproxima e senta ao meu lado, como se quisesse me proteger. Fiel guardiã. Dias de tempestade. Noite sem luz. Abandona sua cama. Deita-se no meu ombro. Vento zunindo. Assobiando nas árvores. Que caem. Ouve-se barulho. Atenta, levanta a cabeça e enfia na minha. Pede e me oferece proteção. Doente procura meu colo. Recupera-se. Tiramos fotos juntas. Em casa. Na rua. No parque. Em Cabo Verde foi a primeira foto. Na praia. No Tarrafal. Onde nos encontramos. Viajamos para outros lugares. Ela tem o meu espírito. Inspira e expira vida. Chamei-a Sol. Fomos para Índia meditar. Não questionou. Amor incondicional. Para New Orleans. Ouvir Jazz&Blues. A Cabo Verde. Rever uma velha amiga, amante de bichos e da boa música. Revisitar suas origens. Ah! e à Inglaterra conhecer as crias de duas amigas queridas. Escalar montanha na Escócia. Visitar meu amigo Jeremy na Ilha de Skye, em sua bucólica propriedade rural. Carneirinhos. Carneirinhos. Que dela fogem. Brincalhona. E ele a fotografa em B&P. Paixão de fotógrafo. E certo amigo brasileiro em sua “roça”. Agora ela faz trilhas. Os pássaros se desassossegam. Cantam. Ela corre. Corre. Espera uma nova viagem. Não quer outra vida, a não ser esta vida de cachorro.




quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Pirata


Por Eurídice Monteiro 


 Ainda não eram quatro horas da madrugada. O velho não conseguia pregar o olho. Abriu a janela para entrar o ar fresco do mar. Lá fora, a essa hora, tudo parecia tranquilo.

A taberna do centro da rua estava trancada. Por um instante, recordou-se que outrora era ali na actual sede da Regedoria que se fazia o negócio do sal de Maio, mas agora sobravam poucos sinais daquele tempo.

Olhou em redor. A maré estava a baixar, desnudando o convés inferior do barco encalhado na baía que seria coberto pelas águas do mar por volta das duas e meia da tarde, com a maré cheia, a hora do banho de mar na outra banda.

Ari, uma cadela parda magricela, que ia a passar ao pé de um bote pesado, deitou ao lado do Pirata, ambos em cima das redes de pesca da tainha. Em idade de cão, Pirata era uma cria de dois ou três anos. Filho único de Ari e Colon, um velho cão molestado que morreria de doença prolongada. «O álcool provoca cegueira aos animais», já dizia a velha dona da taberna do centro da rua à sua comadre Sara Budja. Só podia ser esta a razão por que Ari ficou vesga, de noite para o dia. Contudo, ela ainda vagueava para riba e para baixo no cais de pesca.

Não havia ninguém a entrar ou a sair de casa na Rua Larga. Parecia que todo o mundo dormia sossegadamente. O velho continuava ainda acordado, à janelinha, com os dedos cruzados na nuca e os cotovelos flectidos. Segundo as más-línguas de então, «com aqueles ares tão femininos», tudo indicava que ele era um homem só. Sem mulher alguma na sua atormentada vida, nem filhos que se soubesse. Se calhar, por isso, a noite era longa para ele. O seu companheiro era Pirata, aquele vira-lata. Todos pontapeavam aquele cão e estranhavam por que motivo um homem já de idade avançada dedicava atenção a um cão de rua que ninguém mais queria.


Certa vez, o velho perdeu a cabeça com um outro velho, o seu melhor compadre. Tudo por causa do Pirata. O homem vinha com um martelo na mão para apagar o cão de uma vez por todas, dizendo que Pirata comeu a sua moreia-pintada, que era a única que havia pescado naquele dia, que a sua mulher Sara Budja não conseguiu apanhar o cachorro mas que ele ia matá-lo aquela hora. Puxava o compadre de um lado e ele do outro, jurando-lhe que vira-lata não comia nenhum tipo de peixe quanto mais moreia. Continuavam puxando da ponta e da cabeça do martelo, quando ouviu um estalar de duas taliscas da costela dele. Por causa disso, dias a fio, o velho das longas noites deslocava-se regularmente à enfermaria para ser observado. Ele falava sempre de si e do cão, murmurando que Pirata era sim um cão de rua mas um cachorro digno e com espírito livre, que nunca caminhava de cara metida no chão, pela praia.



Com esta colaboração de Eurídice Monteiro, o blog Bichos de Cabo Verde dá início a uma série de histórias que têm os animais como tema, em cenário cabo-verdiano. Se quiser aderir, mande uma mensagem para a página Facebook de Bichos de Cabo Verde.

sábado, 15 de março de 2014

Bichos amados por seus donos - III

Imagens captadas na campanha de castração da Associação Bons Amigos.


 

Quem ama cuida!


Bichos amados por seus donos - II

Imagens captadas na campanha de castração da Associação Bons Amigos. 

 




Quem ama cuida!


Bichos amados por seus donos - I

Imagens captadas na campanha de castração da Associação Bons Amigos.  




Quem ama cuida.