Por Eurídice Monteiro
A taberna do centro da rua estava
trancada. Por um instante, recordou-se que outrora era ali na actual sede da
Regedoria que se fazia o negócio do sal de Maio, mas agora sobravam poucos
sinais daquele tempo.
Olhou em redor. A maré estava
a baixar, desnudando o convés inferior do barco encalhado na baía que seria
coberto pelas águas do mar por volta das duas e meia da tarde, com a maré
cheia, a hora do banho de mar na outra banda.
Ari, uma cadela parda
magricela, que ia a passar ao pé de um bote pesado, deitou ao lado do Pirata,
ambos em cima das redes de pesca da tainha. Em idade de cão, Pirata era uma
cria de dois ou três anos. Filho único de Ari e Colon, um velho cão molestado
que morreria de doença prolongada. «O álcool provoca cegueira aos animais», já
dizia a velha dona da taberna do centro da rua à sua comadre Sara Budja. Só podia
ser esta a razão por que Ari ficou vesga, de noite para o dia. Contudo, ela ainda
vagueava para riba e para baixo no cais de pesca.
Não havia ninguém a entrar ou
a sair de casa na Rua Larga. Parecia que todo o mundo dormia sossegadamente. O
velho continuava ainda acordado, à janelinha, com os dedos cruzados na nuca e
os cotovelos flectidos. Segundo as más-línguas de então, «com aqueles ares tão
femininos», tudo indicava que ele era um homem só. Sem mulher alguma na sua
atormentada vida, nem filhos que se soubesse. Se calhar, por isso, a noite era
longa para ele. O seu companheiro era Pirata, aquele vira-lata. Todos
pontapeavam aquele cão e estranhavam por que motivo um homem já de idade
avançada dedicava atenção a um cão de rua que ninguém mais queria.
Certa vez, o velho perdeu a cabeça
com um outro velho, o seu melhor compadre. Tudo por causa do Pirata. O homem
vinha com um martelo na mão para apagar o cão de uma vez por todas, dizendo que
Pirata comeu a sua moreia-pintada, que era a única que havia pescado naquele
dia, que a sua mulher Sara Budja não conseguiu apanhar o cachorro mas que ele
ia matá-lo aquela hora. Puxava o compadre de um lado e ele do outro, jurando-lhe
que vira-lata não comia nenhum tipo de peixe quanto mais moreia. Continuavam
puxando da ponta e da cabeça do martelo, quando ouviu um estalar de duas
taliscas da costela dele. Por causa disso, dias a fio, o velho das longas
noites deslocava-se regularmente à enfermaria para ser observado. Ele falava sempre
de si e do cão, murmurando que Pirata era sim um cão de rua mas um cachorro digno
e com espírito livre, que nunca caminhava de cara
metida no chão, pela praia.
Com esta colaboração de Eurídice Monteiro, o blog Bichos de Cabo Verde dá início a uma série de histórias que têm os animais como tema, em cenário cabo-verdiano. Se quiser aderir, mande uma mensagem para a página Facebook de Bichos de Cabo Verde.
Sem comentários:
Enviar um comentário