quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Paixão à primeira vista


Por Mônica Decanini


Praia. Vento forte no rosto. Ela se aproximou. Aninhou-se em meu colo. Evocou meu sentimento materno mais profundo. Porque não sermos mãe e filha? Por pertencermos a diferentes espécies? Que espécie “superior” é esta que abandona a outra como se fosse lixo. Quero ser mãe. De uma adorável cachorrinha, que entregou a mim todo o seu amor. Beijou-me. Aconchegou-se. Recebi muito mais do que dei. A energia amorosa foi intensa, mais do que qualquer outra que já havia sentido. Levei-a dali para longe. Outro continente. Da África para a América do sul. Tornamos-nos companheiras. Quando estou mal se aproxima e senta ao meu lado, como se quisesse me proteger. Fiel guardiã. Dias de tempestade. Noite sem luz. Abandona sua cama. Deita-se no meu ombro. Vento zunindo. Assobiando nas árvores. Que caem. Ouve-se barulho. Atenta, levanta a cabeça e enfia na minha. Pede e me oferece proteção. Doente procura meu colo. Recupera-se. Tiramos fotos juntas. Em casa. Na rua. No parque. Em Cabo Verde foi a primeira foto. Na praia. No Tarrafal. Onde nos encontramos. Viajamos para outros lugares. Ela tem o meu espírito. Inspira e expira vida. Chamei-a Sol. Fomos para Índia meditar. Não questionou. Amor incondicional. Para New Orleans. Ouvir Jazz&Blues. A Cabo Verde. Rever uma velha amiga, amante de bichos e da boa música. Revisitar suas origens. Ah! e à Inglaterra conhecer as crias de duas amigas queridas. Escalar montanha na Escócia. Visitar meu amigo Jeremy na Ilha de Skye, em sua bucólica propriedade rural. Carneirinhos. Carneirinhos. Que dela fogem. Brincalhona. E ele a fotografa em B&P. Paixão de fotógrafo. E certo amigo brasileiro em sua “roça”. Agora ela faz trilhas. Os pássaros se desassossegam. Cantam. Ela corre. Corre. Espera uma nova viagem. Não quer outra vida, a não ser esta vida de cachorro.




quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Pirata


Por Eurídice Monteiro 


 Ainda não eram quatro horas da madrugada. O velho não conseguia pregar o olho. Abriu a janela para entrar o ar fresco do mar. Lá fora, a essa hora, tudo parecia tranquilo.

A taberna do centro da rua estava trancada. Por um instante, recordou-se que outrora era ali na actual sede da Regedoria que se fazia o negócio do sal de Maio, mas agora sobravam poucos sinais daquele tempo.

Olhou em redor. A maré estava a baixar, desnudando o convés inferior do barco encalhado na baía que seria coberto pelas águas do mar por volta das duas e meia da tarde, com a maré cheia, a hora do banho de mar na outra banda.

Ari, uma cadela parda magricela, que ia a passar ao pé de um bote pesado, deitou ao lado do Pirata, ambos em cima das redes de pesca da tainha. Em idade de cão, Pirata era uma cria de dois ou três anos. Filho único de Ari e Colon, um velho cão molestado que morreria de doença prolongada. «O álcool provoca cegueira aos animais», já dizia a velha dona da taberna do centro da rua à sua comadre Sara Budja. Só podia ser esta a razão por que Ari ficou vesga, de noite para o dia. Contudo, ela ainda vagueava para riba e para baixo no cais de pesca.

Não havia ninguém a entrar ou a sair de casa na Rua Larga. Parecia que todo o mundo dormia sossegadamente. O velho continuava ainda acordado, à janelinha, com os dedos cruzados na nuca e os cotovelos flectidos. Segundo as más-línguas de então, «com aqueles ares tão femininos», tudo indicava que ele era um homem só. Sem mulher alguma na sua atormentada vida, nem filhos que se soubesse. Se calhar, por isso, a noite era longa para ele. O seu companheiro era Pirata, aquele vira-lata. Todos pontapeavam aquele cão e estranhavam por que motivo um homem já de idade avançada dedicava atenção a um cão de rua que ninguém mais queria.


Certa vez, o velho perdeu a cabeça com um outro velho, o seu melhor compadre. Tudo por causa do Pirata. O homem vinha com um martelo na mão para apagar o cão de uma vez por todas, dizendo que Pirata comeu a sua moreia-pintada, que era a única que havia pescado naquele dia, que a sua mulher Sara Budja não conseguiu apanhar o cachorro mas que ele ia matá-lo aquela hora. Puxava o compadre de um lado e ele do outro, jurando-lhe que vira-lata não comia nenhum tipo de peixe quanto mais moreia. Continuavam puxando da ponta e da cabeça do martelo, quando ouviu um estalar de duas taliscas da costela dele. Por causa disso, dias a fio, o velho das longas noites deslocava-se regularmente à enfermaria para ser observado. Ele falava sempre de si e do cão, murmurando que Pirata era sim um cão de rua mas um cachorro digno e com espírito livre, que nunca caminhava de cara metida no chão, pela praia.



Com esta colaboração de Eurídice Monteiro, o blog Bichos de Cabo Verde dá início a uma série de histórias que têm os animais como tema, em cenário cabo-verdiano. Se quiser aderir, mande uma mensagem para a página Facebook de Bichos de Cabo Verde.